Este artigo faz parte da rubrica Histórias das Nossas Viagens. Se queres saber mais acerca de algumas das nossas experiências mais divertidas, curiosas, ou simplesmente assustadoras em viagem, clica aqui.

Viajar é uma coisa maravilhosa, não é? Quantos de nós não ficaram viciados naquele momento em que entramos num sítio desconhecido, vemos caras que nunca vimos antes e tentamos (sem sucesso) decifrar o sinal de “Saída” mais próximo escrito na língua local? Há uma certa adrenalina associada a esse momento. Estás longe de casa, no meio de uma multidão desconhecida mas não te sentes em risco. Apenas sentes a adrenalina.

Quando a cidade que visitas é, muito provavelmente, o destino turístico mais popular do mundo e está perfeitamente preparada para receber turistas de todas as partes do globo, nunca chegas sequer a sentir perigo ou risco. É claro que Paris tem as suas áreas menos recomendáveis, mas no geral é extremamente fácil desfrutar da cidade sem teres que te preocupar sequer com os teus pertences, quanto mais com a tua vida. Desengana-te, o meu objetivo não passa por denegrir Paris, uma cidade magnífica, quiçá a mais bela do planeta. Uma cidade com tanta luz e com tantas atrações para visitar que poderias lá passar uma vida inteira a explorar os seus encantos e gastronomia.

Contudo, quando penso em Paris, a minha primeira memória não me leva ao titã de ferro chamado Torre Eiffel, ao encantador Bairro Latino, aos vidrais coloridos da Sainte-Chappelle ou à inacreditável opulência de Versalhes. Lembro-me sobretudo do dia em que um grupo de fanáticos religiosos tentou matar o maior número possível de pessoas. O dia em que podíamos ter morrido… o dia em que tivemos medo de morrer.

Em Novembro de 2015 passamos 4 dias em Paris (10 a 14) para comemorar o meu aniversário, o que significa que nesse período teríamos que reservar um tempinho para ver pelo menos um dos estádios da cidade. A nossa visita coincidia com um jogo amigável entre França e Alemanha que iria ter lugar no dia 13 – curiosamente uma 6ª feira – e para nossa sorte (achava eu…), conseguimos mesmo à última da hora arranjar bilhetes através de uma promoção especial.

A nossa viagem à capital francesa tinha sido um sucesso até então. Tínhamos conseguido ficar abaixo do nosso orçamento, feito duas day-trips até Versalhes e à Disneyland, e, mais importante, tínhamos conseguido ver e visitar tudo aquilo que queríamos. Sinceramente, e apesar do chauvinismo e má-educação do pessoal da restauração local, Paris estava até a ser melhor do que o que esperávamos…e aí veio a Sexta-Feira 13.

Tudo começou já no decorrer do jogo quando de repente ouvimos o som de duas explosões que assustaram a Daniela. Tendo em conta que estávamos a ver um jogo de futebol, pensei que alguém tivesse feito rebentar dois petardos, o que por si só já seria estranho uma vez que se tratava de um jogo amigável sem grande importância. Mal sabíamos que aquele era na realidade o som de duas pessoas a desintegraram-se com a força de duas bombas caseiras. Do nada, começamos a receber montes de chamadas das nossas famílias a partir de Portugal. Estavam a ser disseminadas notícias de tiroteios em massa e explosões no centro de Paris e em redor do estádio, e uma vez que todos sabiam que estávamos no Stade de France, a preocupação em casa era geral. Muito sinceramente, e à exceção do som dos “petardos”, não fazíamos a mínima ideia do que se estava a passar. Toda a gente estava tão calma no estádio e ninguém se apressou a sair do recinto. Pensámos que as nossas famílias estavam a exagerar ou que as notícias estavam a relatar um incidente isolado entre criminosos e polícia. Afinal de contas, os adeptos presentes permaneceram no estádio a ver o jogo até ao fim, e nós também.

Apenas nos apercebemos do que se estava realmente a passar quando tentámos sair do Stade de France. Enquanto caminhávamos em direção à estação de comboio (RER), a multidão à nossa frente começou a correr de volta para o interior do estádio, como se estivessem a tentar fugir de algo que não conseguíamos ver. Esse foi o primeiro momento de real pânico naquilo que viria a ser uma longa noite. Só conseguíamos ouvir crianças a chorar e pessoas aos gritos à procura dos seus entes queridos enquanto uma enorme massa humana se esmagava contra as grades de acesso ao recinto. Após finalmente conseguirmos reentrar no estádio (fomos separados por um momento), os espetadores começaram a sair da bancada e a invadir o campo, e quando perguntámos a algumas pessoas à nossa volta o que se passava, um homem acompanhado de toda a sua família e com um ar extremamente preocupado simplesmente murmurou a palavra “Attentat”. Foi aí que percebemos que as nossas famílias tinham razão e que a situação era grave. Paris estava sob ataque.

Após passarmos cerca de meia-hora no relvado, a polícia conseguiu criar um corredor de segurança e as pessoas foram autorizadas a sair do estádio. Uma vez que não fazíamos a mínima ideia do destino deste corredor, tentei perguntar a um dos polícias se estávamos a caminho da tal estação. Contudo, assim que me tentei aproximar, o polícia apontou-me a arma e ordenou-me que parasse. Congelei por completo! Após lhe fazer a pergunta a pelo menos 5 metros de distância, o agente confirmou que aquele era o caminho correto.

Nunca irei esquecer aquela curta viagem de comboio. Centenas e centenas de pessoas enfiadas dentro de um comboio sobrelotado, e não se conseguia ouvir mais nada a não ser o som arrebatador do silêncio. Sem palavras, sem risos, sem choros…as pessoas estavam adormecidas. Foi uma das situações mais desconfortáveis em que alguma vez me senti, tão insuportável de facto que optámos por sair do comboio antes do destino (Gare de l’Est) e fazer o resto do caminho até ao hotel a pé.

Esta acabou por se revelar uma má decisão. Assim que pusemos um pé fora do comboio, os agentes da polícia presentes na estação começaram a gritar e a mandar todos os passageiros correr para a superfície o mais rápido possível, como se todos estivéssemos numa situação de perigo iminente. Instalou-se o caos. Toda a gente começou a saltar os torniquetes ou a parti-los ao pontapé para conseguir passar, e nós acabámos por conseguir esgueirar-nos pelo meio da multidão em pânico e correr para fora da estação através de um longo túnel subterrâneo.

Já alguma vez sentiste o tempo a passar em câmara lenta? Acho que foi a primeira vez que senti isso. Estávamos a dar a mão um ao outro enquanto corríamos o mais rápido que podíamos ao longo desse túnel, sem saber exatamente de que é que estávamos a fugir ou se iríamos sequer estar em segurança quando chegássemos à superfície. Eu virava a cabeça para o lado e só via a Daniela completamente destroçada e a chorar desalmadamente enquanto corria, e o telefone não parava de tocar. Não sabia o que fazer, estava perdido.

Assim que saímos da estação, o pânico parou e fomos dominados por um extremo desconforto. Estavam bombas a explodir, balas a serem disparadas e pessoas a morrer…mas as ruas não estavam vazias! Ainda era possível encontrar muita gente na rua, mas uma vez mais havia um silêncio ensurdecedor, enquanto todos olhavam uns para os outros de alto a baixo, como que a detetar potenciais sinais de perigo.

Após uma longa caminhada conseguimos finalmente chegar ao hotel, onde tivemos o desprazer de conhecer o rececionista mais inútil de todos os tempos. Estou a falar a sério, aquele homem tinha a sensibilidade de uma beringela! O nosso quarto não incluía acesso wi-fi à internet, sendo o mesmo pago à parte, mas naquele momento não tínhamos dinheiro connosco e, dadas as circunstâncias, não estávamos com grande disposição de voltar à rua para procurar uma caixa multibanco. O nosso voo de regresso estava agendado para a manhã seguinte e os noticiários franceses estavam a dar conta de encerramentos de fronteiras e cancelamentos de voos, por isso não tínhamos a certeza se iríamos conseguir voltar a casa na data agendada e precisávamos de procurar mais informações online e obter contactos que nos poderiam ser úteis como os do Aeroporto de Beauvais ou da Embaixada Portuguesa em França. Infelizmente o tal rececionista não pareceu muito comovido com o nosso apelo, alegando simplesmente que não era ele quem fazia as regras e que as normas eram aquelas.

Desistimos e subimos para o quarto onde passamos a noite inteira a ver a televisão local e nos conseguimos finalmente aperceber da real dimensão do que tinha acabado de acontecer, tomando ainda conhecimento do Massacre do Bataclan, a mesma sala de espetáculos pela qual tínhamos passado no dia anterior. Acabamos por adormecer de exaustão ao som das sirenes de dezenas de ambulâncias que passavam pelo nosso hotel e das atualizações constantes dos números de mortos. 20, 50, 70, 100 pessoas. Todas elas vítimas inocentes de um ataque sem sentido.

Na manhã seguinte decidimos tentar a nossa sorte e fazer tudo de acordo com o que estava previamente planeado. Paris estava vazia, silenciosa, cinzenta…ferida. Apanhamos o metro numa estação já patrulhada por vários militares armados e saímos na estação de Porte Maillot, onde um autocarro nos levaria depois até ao Aeroporto de Beauvais. Esse foi o primeiro momento de alívio. À medida que deixávamos para trás a Cidade-Luz, finalmente paramos de nos sentir em perigo. Felizmente, e depois de 1 hora na estrada, conseguimos chegar ao aeroporto e atestar que os voos estavam a decorrer dentro da normalidade. Esperámos depois outra hora para embarcar e seguimos em direção a casa. E é assim que acabo a relembrar um voo de regresso, normalmente para mim uma experiência tão agridoce, como o ponto alto da minha viagem a Paris.

A verdade é que ainda demorou um bom tempo até nos sentirmos sãos e salvos novamente. Durante várias semanas fomos diariamente bombardeados com novas notícias e detalhes sobre os ataques terroristas de Paris, com novas perguntas sobre o tema por parte de amigos, familiares e colegas de trabalho, e até pedidos de entrevistas para canais televisivos nacionais. Sentir aquele tipo de medo é quase uma epifania. Tentamos sempre imaginar na nossa cabeça que a morte é um processo repentino e limpo. Que não vamos sentir dor, que não nos vamos aperceber do que está a acontecer e, acima de tudo, que não vamos sentir medo. Mas então e as pessoas que estavam no Bataclan? Tiveram tempo suficiente para se aperceber do que se estava passar. Sentiram medo, pensaram naqueles que mais amavam, testemunharam a barbárie e crueldade dos assassinos e, apenas no fim de tudo isto, sucumbiram.

É por isso que nem eu, nem a Daniela, podemos ficar presos ao que aconteceu naquela fatídica noite. Temos que nos lembrar de todos os parisienses que tiveram que se manter na cidade após os ataques e conseguiram seguir em frente. Todos os que perderam alguém na noite de 13 de Novembro e conseguiram seguir em frente. Todos os que tiveram que correr pelas suas vidas ou fingirem-se de mortos para sobreviver e conseguiram seguir em frente. E mais importante, todos os que, bem longe de Paris, têm que lidar com bombardeamentos e tiroteios todos os dias e não têm nenhum outro remédio que não seja seguir em frente.

Por todos eles, e também por nós, seguiremos em frente.


Em memória das 130 vítimas dos Ataques Terroristas de Paris de Novembro de 2015, e dos 4000 refugiados de guerra que perderam a vida em 2016 ao tentar escapar do mesmo destino.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here